domingo, 7 de março de 2010

"O golpe de Estado"


Por
Leonel Moura:


Como tanta coisa em acelerada mudança a técnica do golpe de estado também está em franca evolução. Com exceção de alguns estados falhados, os golpes à Pinochet passaram de moda. Já não é preciso meter tanques e soldados na rua para tomar de assalto o poder. Já não é preciso derramar sangue, assassinar e torturar. Hoje, no mundo desenvolvido, existem outros meios bem mais poderosos para usurpar o que foi conquistado por via legítima e democrática.

Os golpes "civilizados" são muitas das vezes de tipo palaciano. Sucedem no interior das elites dirigentes e raramente chegam ao domínio público. Dos casos recentes e conhecidos temos a forma como Yeltsin cedeu o poder a Putin por via de uma inusitada declaração televisiva. Há também os casos de pura fraude. É hoje evidente que Al Gore ganhou as eleições americanas de 2000, só que através da impostura na contagem de votos na Florida e sucessivas intervenções judiciais o poder foi entregue a Bush.

Trata-se de casos pontuais. A técnica do golpe de estado em democracia tem evoluído com recurso à manipulação dos chamados contrapoderes. Sobretudo da justiça e dos media. No primeiro caso, temos um exemplo na tentativa de "impeachment" - destituição de um eleito por via de um processo formal -, do Presidente Clinton a propósito do seu caso com Monica Lewinsky. Através do equivalente a uma "comissão de inquérito" o procurador Kenneth Starr, numa saga digna de Hollywood, tentou por todos os meios, lícitos e ilícitos, derrubar o Presidente.

Mas, numa sociedade crescentemente dominada pelos media, são estes que vão jogando um papel determinante nos processos de conquista ilegítima do poder. De tal modo que se fala hoje de um novo conceito, precisamente, o de golpe de estado mediático.

Militar ou civil, fraudulenta ou formal, judicial ou mediática, a metodologia é sempre a mesma. Cria-se desordem e insegurança sob qualquer pretexto, para depois, os mesmos que estão na origem da instabilidade se apresentarem como salvadores da Pátria.

Em Portugal estamos a viver o mecanismo. A tentativa de golpe de estado em curso tem seguido a cartilha com denodo. Tudo tem servido para descredibilizar o primeiro-ministro e gerar uma sensação de grande instabilidade política. Desde coisas claramente insignificantes, como a licenciatura de José Sócrates, até insinuações graves de corrupção, abuso de poder e até essa pérola que é o atentado ao Estado de Direito por via telefónica. Os meios são também conhecidos. Cirúrgicas fugas de informação; quebra constante do segredo de justiça; devassa da vida privada; agentes da justiça prontos a infringirem a lei que deviam defender; jornalistas dispostos a ampliarem a mais irrisória intriga ou mesmo a se tornarem agentes diretos da manipulação; intensa promiscuidade entre políticos, jornalistas, polícia e magistratura.

É igualmente clara a origem do golpe. A direção do PSD não se conformou, nem conforma, com o resultado das últimas eleições e procura, por todos os meios, subverter o voto popular. Mesmo se nesse processo se provoca a demolição sistemática do edifício constitucional - veja-se a exigência descarada da demissão do Procurador e do Presidente do Supremo -, e um prejuízo efetivo, social e económico, do país.

Acresce que numa fase de disputa interna, vai imperando no PSD a tendência de radicalização das posições mais extremistas. Quando ontem se falava da necessidade de garantir a estabilidade governativa, hoje fala-se já abertamente de derrube do Governo. Aliás, circula a ideia de que vencerá as eleições internas aquele que for capaz de garantir o "impeachment" de Sócrates, verdadeiro e único objetivo de tanta intriga, para o que o PSD possa finalmente regressar ao poder.

Portugal é neste momento um tubo de ensaio do golpe de estado em democracia. O desfecho desta operação terá significativas consequências. Se o golpe vencer, a democracia vai ter de se adaptar a estes ataques, o que só pode acontecer com a diminuição das liberdades cívicas e individuais e crescente perda de transparência da ação política. Neste sentido, não é Sócrates ou o PS que estão em causa. É a liberdade individual e a capacidade de decisão coletiva que estão em risco. Por isso mais uma vez há que ter a coragem de dizer: no pasarán! E só é pena que muitos dos que se dizem liberais e de esquerda sejam coniventes com um tão evidente ataque à liberdade e à democracia.